Animal Passions (ed. Alan Coren; Robson Books; Setembro de 1994)

maggie

Não estou, devo dizer logo de uma vez, envolvido em nenhum relacionamento formal com um cachorro. Não dou de comer a um cachorro, nem abrigo, não procuro canis para um quando vou viajar,  tampouco tiro piolho, nem mesmo providencio para que alguns de seus órgãos internos sejam removidos quando eles me aborrecem. Em resumo, não tenho um cachorro.

Por outro lado, tenho um relacionamento meio dissimulado, ilícito com um cachorro, ou melhor, duas cachorras. Por conseguinte, acho que sei um pouco como é ser uma amante.
As cachorras não moram na casa vizinha. Eles nem mesmo moram na mesma – bem, eu ia dizer rua e ia destrinchar aos poucos, mas vamos direto ao assunto. Elas moram em Santa Fé, Novo México, que é um baita dum lugar para um cachorro, na verdade para qualquer um, morar. Se você nunca visitou ou passou um tempo em Santa Fé, Novo México, então permita-me dizer o seguinte: você é um completo idiota. Eu mesmo era um completo idiota há até mais ou menos um ano quando uma combinação de circunstâncias, as quais não vou me preocupar em explicar, me levaram a pegar a casa de alguém emprestada bem no deserto ao norte de Santa Fé onde fui para escrever um roteiro. Para lhes dar uma ideia do tipo de lugar que é Santa Fé, eu poderia falar a vontade sobre o deserto, a altitude, a luz e as jóias de prata e turquesa, mas a melhor maneira é apenas mencionar um sinal de trânsito na auto-estrada para quem vem de Albuquerque. Ele afirma, em letras grandes, VENTOS TEMPESTUOSOS, e em letras menores, PODEM ACONTECER.
Eu nunca conheci os meus vizinhos. Eles moravam há mais ou menos um quilômetro de distância no topo da duna seguinte, mas assim que comecei a sair para minhas caminhadas matinais, uma corridinha, um passeio suave, conheci as suas cachorras. Elas ficaram instantaneamente e delirantemente felizes em me ver que imaginei que elas deviam pensar que já havíamos nos encontrado em uma vida anterior (Shirley Maclaine morava nas redondezas e elas devem ter adquirido todo os tipos de ideias estranhas só por estarem perto dela).
Seus nomes eram Maggie e Trudie. Trudie era uma cachorra de aparência excepcionalmente boba, um poodle francês preto e grande que se movia exatamente como se fora animado por Walt Disney: um tipo de saltitar que era enfatizado por suas orelhas grandes e desajeitadas na extremidade frontal e um rabo curto e atarracado com um pouco de trabalho topiário na extremidade. Seu pêlo consistia de um emaranhado de cachos negros bem enrolados, que se uniam ao efeito Disney de ser, fazendo parecer com que ela fosse completamente desprovida de partes pudendas. A maneira de indicar, toda manhã, que estava delirantemente feliz em me ver era fazendo algo que eu sempre pensei que fosse chamado “exibicionismo”, mas que na verdade era chamado “saltitar”. (Acabei de descobrir o meu erro, e vou ter que repetir grandes partes da minha vida em minha mente para ver em que tipo de confusão posso ter me envolvido ou causado.) “Saltitar” é pular para cima com suas quatro patas simultaneamente. Um conselho: não morra até ter visto um poodle preto e grande saltitando na neve.
A maneira da Maggie indicar, toda manhã, que estava delirantemente feliz em me ver era mordendo Trudie no pescoço. Também era a maneira dela indicar que estava delirantemente animada com a possibilidade de sair para passear, de demonstrar que estava passeando e gostando muito, de mostrar que queria ficar em casa, era também a maneira dela indicar que queria ficar fora de casa. Morder Trudie no pescoço repetidamente e de forma brincalhona era, em resumo, sua maneira de viver.
Maggie era uma cachorra bonita. Ela não era um poodle, e na verdade o tipo de raça de cachorro que ela era estava insistentemente na ponta da minha língua. Não sou muito bom com raças de cachorro, mas Maggie era uma das mais clássicas, óbvias: algo como uma espécie de beagle grande, vagamente parecida com um retriever, lustrosa, preta e marrom. Como eles são chamados? Labradores? Spaniels? Elkhounds? Samoiedas? Perguntei ao meu amigo Michael, um produtor de filmes, uma vez que senti que o conhecia bem o suficiente para admitir que não conseguia resolver o problema do tipo de raça de cachorro que a Maggie era, apesar do fato de ser tão óbvio.
– A Maggie – ele me disse com seu sotaque texano arrastado, sério e vagaroso, – é uma vira-lata.
Então, toda manhã partíamos os três: eu, o escritor inglês grandão, Trudie, a poodle e Maggie, a vira-lata. Eu corria, troteava e andava pelo caminho amplo e sujo que atravessava as dunas vermelhas e secas, Trudie saltitando brincalhona, por aqui e por ali, orelhas abanando, e Maggie rolando alegremente, mordendo o seu pescoço. Trudie era de extrema boa índole e há muito sofria por conta disso, mas ocasionalmete ela, de repente, ficava de saco cheio. Nesse momento ela executava uma repentina pirueta no ar, pousava exatamente em pé encarando Maggie e lhe dava um olhar extremamente penetrante, com o qual Maggie subitamente sentava-se e começava a morder gentilmente sua própria pata traseira direita como se estivesse de saco cheio da Trudie de qualquer maneira mesmo.
Então elas começavam tudo novamente e saíam correndo, rolando e dando cambalhotas, caçando e mordendo, por todas as dunas, pelas gramas baixas e vegetação rasteira, e então ocasionalmente, de modo repentino e inexplicável, paravam como se tivessem ambas, simultaneamente, ficado sem movimentos. Elas então fitavam o vazio de forma embaraçosa por um tempo antes de começarem tudo novamente.
E qual era o meu papel nisso tudo? Bem, nenhum na verdade. Elas me ignoravam completamente por todo os vinte ou trinta minutos seguintes. O que era perfeitamente normal, claro, eu não me importava. Mas isso me deixou intrigado, porque toda manhã bem cedo elas vinham latindo e arranhando as portas e janelas da minha casa até que eu me levantasse e as levasse para passear. Se algo perturbasse esse ritual diário, caso eu tivesse de dirigir até a cidade, ou tivesse uma reunião, ou viajasse para a Inglaterra, ou algo assim, elas ficavam completamente devastadas e simplesmente não sabiam o que fazer. Apesar do fato de sempre me ignorarem totalmente quando íamos para nossos passeios juntos, elas simplemente não conseguiam ir passear sem mim. Isso se revelou uma tendência filosófica profunda nessas cachorras que não eram minhas, pois elas tinham concluído que eu tinha que estar lá para que elas pudessem me ignorar devidamente. Não se pode ignorar alguém que não está lá, porque não é isso que “ignorar” significa.
Maiores profundidades de seus pensamentos foram revelados quando a namorada de Michael, Victoria, me disse que uma vez, quando fora me visitar, ela tentara jogar uma bola para que Maggie e Trudie fossem pegar. As cachorras se sentaram e assitiram paralisadas conforme a bola subia no céu, caía e finalmente quicava pelo chão até parar. Ela disse que a mensagem que ela havia captado delas era: “Nós não fazemos isso. Nós passeamos com escritores”.
O que era verdade. Elas passeavam comigo o dia todo, todos os dias. Mas, exatamente como os escritores, cachorros que passeam com escritores não gostam nada de escrever. Então elas ficavam rodeando os meus pés o dia inteiro e empurrando meu cotovelo para fora do lugar enquanto eu estava digitando para que elas pudessem descançar os seus queixos no meu colo, e olhavam fixamente e pesarosamente para mim na esperança de que eu entendesse a razão e saísse para passear e, dessa forma, elas poderiam me ignorar adequadamente.
E então, à noite, elas se mandavam para suas casas verdadeiras para serem alimentadas, beberem água e irem para cama dormir. O que para mim parecia um acordo agradável, pois eu tinha todo o prazer da companhia delas, que era considerável, sem ter qualquer responsabilidade por elas. E continou sendo um acordo agradável até o dia em que Maggie apareceu toda contente cedo pela manhã pronta e ansiosa para me ignorar sozinha. Sem a Trudie. Trudie não estava com ela. Fiquei desnorteado. Não sabia o que tinha acontecido com a Trudie e não tinha como descobrir, afinal ela não era minha. Teria ela sido atropelada por um caminhão? Estaria ela deitada em algum lugar, sangrando na beira da estrada? Maggie parecia inquieta e preocupada. Ela deveria saber onde a Trudie estava, pensei, e o que tinha acontecido com ela. Era melhor segui-la, como à Lassie. Coloquei os meus sapatos e me apressei. Andamos por quilômetros, percorendo todo o deserto procurando por Trudie, seguindo os caminhos mais sinuosos. De repente percebi que Maggie não estava procurando por Trudie coisa nenhuma, ela estava apenas me ignorando, um estratégia que eu estava complicando ao tentar segui-la o tempo todo ao invés de apenas seguir a minha rota normal de caminhada matutina. Então, por fim, retornei pra casa e Maggie sentou-se aos meus pés e se entediou. Não havia nada que eu pudesse fazer, ninguém para quem eu pudesse ligar, porque a Trudie não pertencia a mim. Tudo o que eu podia fazer, como uma amante, era me sentar e me preocupar em silêncio. Fiquei sem apetite. Depois que a Maggie foi embora para casa aquela noite, dormi muito mal.
E pela manhã elas estavam de volta. As duas. Apenas algo terrível tinha acontecido. Trudie tinha sido tosada. A maior parte de seu pêlo fora aparado para apenas uns dois milímetros de altura, com alguns tufos topiários na sua cabeça, orelhas e rabo. Fiquei indignado. Ela estava ridícula. Saímos para passear e eu fiquei envergonhado, de verdade. Ela não estaria com essa aparência se fosse minha cachorra.
Alguns dias depois tive que voltar para a Inglaterra. Tentei explicar isso às cachorras, prepará-las, mas elas estavam em estado de negação. De manhã eu saí, elas me viram colocar as malas na traseira da caminhonete e mantiveram distância, estavam tremendamente interessadas em um outro cachorro ao invés disso. Realmente me ignorando. Voei para casa me sentindo estranho.
Seis semanas depois, voltei para trabalhar em um segundo rascunho. Não era apenas chamar e as cachorras apareceriam. Eu tinha que dar voltas no quintal dos fundos, de maneira totalmente óbvia e fazendo todos os tipos de barunhos agudos como aqueles que apenas os cachorros estão habituados a perceber. De repente, elas captaram a mensagem e correram através do deserto coberto de neve para me ver (era meados de Janeiro então). Assim que chegaram, se atiravam repetidas vezes nas paredes de alegria, e então não havia muito mais o que pudessemos fazer a não ser sair para uma Ignorada saudável e cintilante na neve. Trudie saltitava, Maggie a mordia no pescoço, e eu andava. E três semanas mais tarde fui embora novamente. Voltarei de novo para vê-las em algum momento deste ano, mas precebo que sou um Outro Ser Humano. Cedo ou tarde terei que me comprometer com um cachorro que seja meu.

 

Written By

Carlos Eduardo

Meu nome é Carlos Eduardo e já completei 37 primaveras. Meu sonho é ter um robô de estimação e viajar o mundo em um balão.